Dois feriados estaduais chamam a atenção em Goiás no mês de janeiro. No dia 20, é celebrado o Dia do Católico, e no dia 23, o Dia do Evangélico. Embora chamem a atenção, não são casos isolados de feriados baseados em tradições religiosas. Em âmbito nacional, o dia 12 de outubro é o Dia de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil. Outros exemplos incluem o Natal (25 de dezembro), a Sexta-Feira Santa (em 18 de abril neste ano) e o Dia de Corpus Christi (19 de junho, em 2025).
Em muitos municípios, também é comum que o dia do santo padroeiro seja feriado local, como ocorre no dia 20 de janeiro, em homenagem a São Sebastião, no Rio de Janeiro. Em alguns casos, a data coincide com o aniversário da cidade, como o dia 25 de janeiro, que celebra a fundação de São Paulo e a conversão de São Paulo apóstolo.
No entanto, em um país cuja Constituição estabelece o Estado laico, como justificar os feriados de origem religiosa? Em poucas palavras, essas datas se tornaram historicamente relevantes. O que se considera, do ponto de vista legal, não é a fé das pessoas, mas a cultura e a tradição.
“O entendimento é que a religiosidade faz parte da cultura, e por isso, não há desvio em usar referências religiosas em decisões estatais que sofreram esse tipo de influência”, explica o jurista Carlos Ari Sundfeld, professor da FGV Direito, à BBC News Brasil.
Ainda assim, a questão é complexa. Para o jurista Rubens Beçak, professor da Universidade de São Paulo (USP), “a presença desses feriados religiosos está na tradição e na culturalidade, mas tecnicamente é uma afronta ao princípio [da laicidade]”. No entanto, ele explica que essas decisões passam pelo que se chama de “ponderação”. O Estado laico permite certas manifestações histórico-culturais, mesmo que tenham fundo religioso, como a fixação de feriados.
A primeira legislação federal que instituiu o Estado laico no Brasil foi promulgada há 135 anos, em janeiro de 1890, pelo marechal Manoel Deodoro da Fonseca, chefe do governo provisório após a Proclamação da República. A lei proibia as autoridades de estabelecerem ou restringirem qualquer religião, bem como criar distinções entre cidadãos com base em crenças.
Essa laicidade foi reafirmada na Constituição de 1988, que, em seu artigo 19, proíbe relações de dependência ou aliança entre os poderes públicos e denominações religiosas.
A criação de feriados
De acordo com a jurista Andreia Antonacci, professora da Universidade Mackenzie Alphaville, a criação de feriados por lei não fere a laicidade prevista na Constituição. “Os feriados, de forma geral, não prejudicam o princípio constitucional, pois todos foram instituídos por leis. Quando pensamos em Nossa Senhora Aparecida, há uma história por trás, mas quem não é católico pode interpretar o 12 de outubro como o Dia das Crianças”, explica ela.
Para Renato Ribeiro de Almeida, coordenador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político, esses feriados são compreendidos como parte do calendário civil e laico do Brasil, mesmo que tenham origem religiosa. “Independentemente de a pessoa professar a fé cristã no dia 12 de outubro, essa data já é vista como uma festividade nacional, um dia de descanso e até o Dia das Crianças”, comenta ele.
Os feriados religiosos, segundo Sundfeld, estão incorporados ao calendário brasileiro há muito tempo, desde antes da Constituição de 1988. “Eles já fazem parte do nosso calendário civil, que é laico, mas carregam tradições religiosas”, afirma.
A lei garante que os efeitos dos feriados são puramente civis, relacionados à regulação dos dias de trabalho e funcionamento de estabelecimentos. Assim, um empregador não pode exigir que um funcionário trabalhe no Dia de Nossa Senhora Aparecida, mesmo que não professe a fé católica, pois o feriado é instituído por lei nacional.
Tradição cultural
A questão da coexistência de um Estado laico com tantos feriados religiosos ainda gera debates. A recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que permitiu a manutenção de crucifixos em repartições públicas, reforça o entendimento de que tais símbolos são culturais, não religiosos. “Prevaleceu a tese de que a presença de crucifixos é uma tradição cultural que não fere a laicidade”, explica Beçak.
Ele também aponta que a influência da Igreja Católica no Brasil, historicamente predominante, ajudou a moldar esse cenário. “Temos feriados religiosos universais, como o Natal, e outros mais regionais, como o Dia do Evangélico ou do Católico, além de feriados locais, como o Dia de São Sebastião no Rio de Janeiro”, destaca.
O ponto central é que todos os feriados, independentemente de suas justificativas simbólicas, são instituídos por decisão política do legislador. A tradição e a cultura, ao longo da história, continuam influenciando o calendário brasileiro.