3 de novembro de 2025
Goiânia

MARGINAL BOTA-ÁGUA:

Imagem reprodução

Goiânia, a cidade perdida? (Parte 4)

O Plano Urbano de Goiânia foi pensado para uma cidade de 50 mil habitantes e hoje temos 30 vezes mais do que isso, pelo menos. Apesar de terem sido previstas áreas muito maiores de verde urbanizado no plano original da cidade de Attílio Corrêa Lima, com o tempo algumas delas foram sendo vendidas, doadas e griladas. O descaso com o planejamento urbano e a visão de invisibilização que canalizou os rios da capital, eliminando as margens ciliares, intensificou essa tendência de impermeabilização do solo, tem catalisado enchentes e alagamentos na Marginal. A construção residencial na Avenida 115, por exemplo, como ocorreu nas irregulares chácaras nas margens da marginal Botafogo, na Avenida 115 (St. Sul, por exemplo), que deveriam fazer parte de uma espécie de visionário parque linear que ocuparia toda extensão do córrego, têm contribuído para o alagamento, no sentido de que áreas que poderiam ser um parque como floresta capaz de absorver a água de chuva em seu solo, após serem ocupadas, passam a perder terreno natural, o que não favorece o plano hidrológico mais sustentável.
Na verdade, o projeto original é bastante evoluído para sua época, tanto que, apesar dos esforços para apagar a memória e o patrimônio do pioneirismo paisagístico, arquitetônico e urbanístico de Goiânia, ainda assim, a cidade é citada como uma das mais arborizadas e ecologicamente corretas do mundo, bem como, capital do Art Déco no Brasil. O problema maior é, na verdade, a falta de consciência e educação patrimonial desse legado para as autoridades, tecnocratas e cidadãos, que ainda hoje é mais conectado com a cultura da sustentabilidade atual, do que o último Plano Diretor, que, na verdade, aprofundou a tendência de verticalização e adensamento em áreas residenciais, cujo resultado será catastrófico para a mobilidade e drenagem urbana.
Conforme tem sido defendido pelo Plano Diretor de Drenagem Urbana da UFG, devemos pensar o fluxo das águas da cidade como a circulação sanguínea em um corpo. O sangue arterial é água e o sangue venoso é o esgoto. Pelas artérias da cidade devem circular a água da chuva, dos rios e das ruas, devendo, para isso, não estarem entupidas por lixo e estarem bem dimensionadas para a quantidade de água esperada para aquele canal de escoamento. Feita essa forçosa analogia urbanística naturalista, devemos entender que há inputs e outputs em todo o sistema e que, apesar de a água ter a capacidade de evaporar, a situação de canalização dificulta o ciclo natural da chuva, obrigando a uma situação em que as águas parecem lutar para reconquistar o lugar outrora só seu, doravante ocupado pela evolução humana. Soma-se isso ao aquecimento global, que é também resultado de anos de ação antropocênica antropocentrista no planeta, cujo progresso tem sido associado à destruição de matas e povos originários e à dissociação do homem da sua mãe ancestral. Catástrofes têm sido geradas porque não estamos escutando o verde som das águas.
Uma proposta viável seria a da Marginal ser passível de pedestrização e arborização para dar lugar a um parque linear, combinada com outras obras de e reaproveitamento e armazenamento de águas, como jardins de chuva, reservatórios de retenção e dispositivos de infiltração de águas pluviais e em áreas vicinais, como a avenida Fuad Rassi, que fica em um elevado da cidade, para evitar que ela se torne uma cachoeira, que escorre milhões de milímetros cúbicos de água para um diminuto canal cimentado por dois frágeis paredões, que, por sua vez, sustentam 2 sinuosas pistas. É preciso pensar que se tornou imperativo reter ou redirecionar a água na origem (controle de cheias a montante), antes que ela se acumule em mais gotas e formem problemas ainda mais incontroláveis para o passeio público. Dessa forma, em uma perspectiva de desenvolvimento urbano sustentável complexa (ecologia, economia e equidade), seria possível conciliar o córrego, o trânsito intenso e as áreas residenciais sem gerar tantos impactos em alguns pontos que se tornam intransitáveis, desde que se façam valer a dimensão natural, construída e cultural na reconstrução do lugar, tendo como base o vindouro Plano Diretor de Drenagem Urbana da UFG.
Para além disso, é preciso fazer coro com o modelo de cidade espongiária de Kongjian Yu, que aponta para a possibilidade de acolhimento humano da natureza, suas forças e leis. Ou seja, Goiânia deveria adotar a água em sua fase de calmaria, proporcionando a sua adequação espacial com o espaço público, para que, assim, admirando e entendendo sua dinâmica, possamos criar usos e cenários de mitigação delas em seus momentos de catarse, o que permitiria à municipalidade reutilizar a água da chuva e até mesmo gerar energia. A drenagem urbana não pode ser um processo de enxugar gelo, mas sim um plano sistêmico que pensa as águas, as margens, as matas ciliares, os fundos de vale, as áreas de encosta e de risco como partes de um sistema integrado em que os 4 elementos se revezam em 4 estações para definir o (micro)clima de nossas vidas. A descanalização e requalificação da Marginal, através da recuperação das margens com replantio de vegetação, certamente, permitirá ampliar a permeabilidade do uso do solo, minorando a quantidade de água corrente no ambiente construído da cidade.
O ideal é que Goiânia resgatasse as premissas iniciais de seu planejamento original, investindo não na revitalização na da Marginal Botafogo, mas, sim, na do Córrego Botafogo, tornando-o novamente potável e navegável, como é o Rio das Almas em Pirenópolis. No limite, um grande projeto de ambientalização do espaço público poderia ser realizado para transformá-lo em uma grande área pública, verde e aberta, um parque linear que favorecesse a mobilidade ativa e drenagem sustentável, em que o rio voltasse a ser o grande protagonista da paisagem, e não mais a canoa furada do vai e vem sem fim de motoristas velozes e furiosos que fingem que esta via é o anel viário de Goiânia, quando, na verdade, ele só liga o Serra Dourada à Rodoviária. Um rio que você pode circular pelas suas margens é um benefício coletivo que fica para gerações presentes e futuras. Não por outro motivo tem sido investido tanto em processos de despoluição das águas, como ocorreu no Rio Sena em Paris e está ocorrendo no Rio Pinheiros em São Paulo (Projeto Novo Rio Pinheiros).

Fred Le Blue Assis, idealizador do GYN 2030, doutor em Planejamento Urbano

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